terça-feira, dezembro 23, 2008

Dias feios e bonitos


"O cenário é sempre o mesmo, mas a edição das imagens é completamente diferente. Passo quase todo dia por um dos muitos lugares feios de São Paulo, o "Minhocão", um complexo de viadutos que passa pelo centro da cidade. O apelido é engrçadinho e homenageia nosso interminável senso de humor. O nome oficial, Elevado Costa e Silva, homenageia o marechal que assumiu a presidência do Brasil em 1967 e promulgou o AI-5, decreto que fechou o Congresso Nacional por prazo indefinido, determinou a censura prévia à música, ao teatro e ao cinema e proibiu "atividades ou manifestações sobre assunto de natureza política".

Esse contraste entre nome e apelido tem tudo a ver com meu ânimo quando passo por ele - às leve e entusiasmado, às vezes vazio e derrotista. O mesmo caminho, o mesmo destino, sentimentos tão diferentes. Em alguns dias, as janelas com plantas e enfeites, uma pessoa tomando sol na varanda ou um grafitte são capazes de me fazer sorrir. Aprecio os detalhes das fachadas mais antigas, as árvores que já espiam por cima das pistas, um gato preguiçoso. Pequenos recortes de humanidade, que eu gostaria de guardar, colecionar, compartilhar.

Em outros, não há o que seja capaz de me animar. Só vejo os defeitos do mundo. O próprio Elevado, a sombra que ele provoca debaixo de si, a umidade infiltrada no concreto. A agressividade dos motoristas. O ponto viciado de despejo de entulho. A pobreza tão presente.

É incrivel perceber que o cenário é sempre o mesmo, sou eu que mudo. É como se o diretor de imagem do meu Truman Show particular selecionasse ângulos, enquadramento, iluminação e trilhas sonoras diferentes a cada dia, produzindo sensações opostas a cada trecho do filme.

Hoje estou em mais um dia de Marechal que de minhocão. Achando tudo feio, triste, sem saída. Reparando muito mais na maledicência que nos espíritos desarmados, generosos; mais nos inimigos que nas demonstrações de apoio e amizade. Não sei o que fazer. Voltar para casa e enterrar a cabeça no travesseiro está fora de cogitação. Ao trabalho, então.

Escutei músicas tristes no computador. Escrevi para uma amiga. Arrumei a mesa. Tomei providências simples. Comecei escrever projetos para o ano-novo. Trabalhei em camera lenta, respeitando minha falta de energia. Continuo triste, com vontade de largar tudo, de mudar completamente minha vida. Vontade convincente, mas me conheço bem para saber que é mentira. É só o humor do dia.

Não sei se será hoje ainda, amanhã ou depois, sei que vai passar. Aquelasamambaia brotando da parede vai chamar mais a minha atenção que a manhcha de umidade no concreto, a gentileza será mais marcante que a ríspidez e eu terei disposição para lidar com as coisas boas e ruins dessa vida - que estão ai todos os dias."

- Soninha Francine.

sexta-feira, dezembro 12, 2008

Barco de Ilusões


Durante muito tempo naveguei pelos mares da vida, num barco de ilusões.
Um barco sem remos nem proa, à deriva, com a única finalidade de fugir das tempestades de tédio e calmarias de ansiedades.
E, por navegar à deriva, foram tantas as vezes que cheguei despedaçado em ilhotas perdidas nos oceanos da vida real.
E, aí, as náuseas e enjôos que eu não sentia no barco imaginário agora eram insuportáveis, e não me restava outra alternativa que não fosse o barco de ilusões.
Os naufrágios se seguiam sucessivamente, ora causados por icebergs de tristezas, ora pela insanidade de um marinheiro perdido num mar de angústias, ora pela fragilidade da embarcação, construída em fantasias.
A cada viagem, um naufrágio, e a cada naufrágio, mesmo despedaçado, uma nova viagem. Sem rotas estabelecidas, sem ao menos uma estrela para me guiar, "porque viajar era preciso, viver sem viajar não precisava".
Quantos tripulantes sucumbiram, outros tantos obrigados a embarcar em um navio cheio de grades rumo ao porto chamado liberdade.
A cada dia este marujo se tornava mais marcado, as viagens agora compulsivas, e as paisagens, já não mais coloridas, e sim cinza-fúnebre.
E à deriva só restava aguardar o naufrágio final que redimiria, visto que as águas-vivas haviam queimado e feito arder minha alma a tal ponto, que não via mais saída, pois as marcas eram profundas, e as seqüelas visíveis.
Até que num novo choque com alguma embarcação que encalha os encalhados, quando estava prestes a me atirar, eis que no horizonte me surge uma luz. No início um tanto opaca, mas seu brilho foi aumentando, aumentando, e iluminou meu coração.
Era a luz de Deus. Do Deus dos desgraçados, dos marinheiros desgarrados, dos náufragos despedaçados.
Essa luz tão intensa hoje é a luz que me guia, não nos mares revoltos dos pesadelos, mas sim em terra firme. Troquei o barco de ilusões por um de dignidade, construído não de fantasias, mas sim de amor a Deus, a mim e a todos os navegantes.